quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

As muitas faces do escritor

Há algum tempo afirmei que trato a literatura como a mais completa de todas as artes. Ainda penso assim. Para mim, o autor suplanta músico, escultor, cineasta, pintor. Não seria exagero chamá-lo de melhor fiandeiro, artesão, parteiro, despenseiro dos mistérios eternos. A Revelação dependeu de homens e mulheres ousarem grafar o imperceptível.
Gosto de tratar o escritor como um encantador, hipnotizador de serpentes. Ou talvez, feiticeiro – sua arte seduz. O escritor é especialista em magia, hábil na prática de criar  mundos fantásticos. Do seu condão, realidades inefáveis se tornam plausíveis. Ele é mestre no dom de misturar fato e mistério.
Escrever requer mais que técnica, carece de disciplina, mais que disciplina, exige talento. Alguns se debruçam sobre o texto e basta um átimo para nascer uma peça imortal. A maioria (eu, principalmente) argumenta, mas patina e não sai do lugar;  sua em bicas para compensar o pouco talento, mas acaba devendo a beleza inebriante da melhor literatura.





Em “Cartas a um jovem poeta”, Rainer Maria Rilke ensina o escritor a ser artista  e a aproximar-se de sua “vivência sexual”. Ele diz que escrever dá prazer sensual, erótico. Semelhante a qualquer intimidade, o literato se expõe a dor e prazer. Mas, teimoso, se arrisca. Galanteia, corteja, seduz. Rilke concorda com o discípulo quando o admoesta a viver e escrever no “cio”. Que a tinta vire sêmen que fertiliza ouvidos e corações. Que de sua paixão venha à luz o imarcescível. Às vezes apaixonado e de tão enamorado, bem diagnosticou Álvaro de Campos, não passa de um ridículo.  Mas ele só ama o ato de redigir.  E tudo vira para o bordador de pensamentos, uma carta de amor ridícula: “Não seriam cartas de amor se não fossem ridículas”.


Hemingway, por sua vez, aconselhou que se cravasse a pena como quem espeta o touro na arena. Ao sentir vida e morte na espreita, sobre os ombros, o toureiro das metáforas, sente a verdade como imperativo. Redigir se torna sacerdócio vicário – ele se imola junto com a presa para salvar a vida.
Alberto Caeiro o igualou a um pastor de rebanhos. “Sou guardador de rebanhos./ O rebanho é os meus pensamentos/ E os meus pensamentos são todos sensações”. Redator de toda espécie zela pelo que acabou de compor com afeto campestre. Quem se despeja no que grava sempre se biografa, pois é sua vida que sangra. Se íntimos não conseguirem reconhecer o dono dos verbos logo no primeiro parágrafo, a página é apócrifa.


Vinicius de Moraes recomendou: “Troquem-se tijolos por palavras, ponha-se o poeta, subjetivamente, na quádrupla função de arquiteto, engenheiro, construtor e operário, e aí tendes o que é poesia”. Escrever cria e dá forma ao fugaz; faz o inimaginável, próximo; traz o contraditório, que perambula no vazio, para perto do espírito. “O material da poesia”, diz o Poetinha, “é a vida”. E se é vida, então quem se aventura, considere seu ofício “a lenha preferida para a lareira do alheio”.
Escrever não se resume a organizar frases, nem a manter-se preciso. O escritor quer misturar-se ao anônimo que o devora. Eduardo Galeano narra em “O livro dos abraços” a experiência do pastor Miguel Brun durante uma missão evangelizadora entre os índios no Chaco paraguaio. “Os missionários visitaram um cacique que tinha fama de ser muito sábio. O cacique, um gordo quieto e calado, escutou sem pestanejar a propaganda religiosa que leram para ele na língua dos índios. Quando a leitura terminou, os missionários ficaram esperando. O cacique levou um tempo. Depois, opinou: -Você coça. Coça bastante, e coça muito bem. E sentenciou: – Mas onde você coça, não coça”.


A palavra falada tem asas, a escrita, raízes. Uma vez anotada, ela permanecerá serva de quem a depura com os filtros de sua subjetividade. Traumas, alegrias, expectativas, decepções, fantasias, ódios fazem aquele que se apropria do artigo apaixonar-se ou desdenhar o que tenta compreender. Todo livro está sentenciado a infinitas interpretações – e quanto mais a página sobreviver ao tempo, mais complexo o desafio de decifrá-la.
Quem é escritor? Rilke responde: “Investigue o motivo que o impele a escrever; comprove se ele estende as raízes até o ponto mais profundo do seu coração, confesse a si mesmo se o senhor morreria caso fosse impedido de escrever”. Para conhecer os ungidos do Panteão das Letras: “Pergunte a si mesmo na hora mais silenciosa da madrugada: preciso escrever? Desenterre de si mesmo uma resposta profunda. E, se ela for afirmativa, se o senhor for capaz de enfrentar essa pergunta grave com um forte e simples ‘Preciso‘, então construa sua vida de acordo com tal necessidade”.


O redator deseja a graça de não rabiscar nada por encomenda. Ele sabe que em poucas linhas, narrativa, argumento ou poesia, ganha vida própria. Nunca é bom produzir boas argumentações como tarefa. Escrever é deixar-se conduzir a fins inesperados. Daí o autor buscar certo ócio, pois nota a importância de ser inútil para continuar essencial. Literatura se basta em si mesma.
Escrever e humilhar-se são quase sinônimos.  No ponto final, o texto merece suplantar o criador em excelência. E aquele que outrora se  considerava onipotente se regozijará em ver que seu esforço se tornou eterno – enquanto os dedos encarquilharam.
Soli Deo Gloria 

Texto do Pr. Ricardo Gondim

Paulo Cheng

16 comentários:

  1. Neste belo texto, o Ricardo vai fundo nessa arte da literatura, escrever é algo mágico, misterioso, belo, poderoso, enfim, a escrita é uma das mais maravilhosas artes criadas pelo homem, e que fascina a humanidade desde a sua invenção. E para nós blogueiros que lidamos com essa ferramenta, a escrita é um vício gostoso que alimentamos diariamente, parabéns ao Gondim por esse belo texto, muito bacana.

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  2. Paulo, tudo bem amigo?

    Para mim, escrever é libertar-se.

    Se não é um processo de libertação da alma, expressada através de um texto, não é literatura, é só um texto.

    É técnica, mas não só; é o complemento do leitor, é escrever o que nunca foi dito, ou "como" nunca foi dito, é a estranheza, o subtexto, o escrever nas entrelinhas, aí está a Literatura cumprindo-se.

    Uma forma divina de expressão, alimentada pela nossa alma e que escorre aos dedos feito mel. Ali se fará a Literatura, em qualquer madrugada onde o escritor estiver conversando consigo mesmo, esperando testemunhas que completem o diálogo.

    Grande abraço, amigo!

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  3. Acho que do rascunho, até a obra final, um universo é criado,e tudo gira ao redor deste universo,quando nele mergulhado. Escrever é sublime, e traz libertação. Um escritor seria um dos responsaveis pela manutenção da imaginação. Por isso, seu papel é fundamental.


    abraço Cheng
    OBS: To Lendo Hemingway " O Sol tambem se levanta"

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  4. Belo artigo do Pr. Gondim.

    Eu só não gosto de ranquear arte.

    Cada arte tem seu valor. São muito diferentes, apesar de seguirem o mesmo objetivo, que é despertar sentimentos mil em quem as aprecia.

    Dizer que a literatura é mais completa que a pintura ou música ou foto, etc. é bobagem.

    Respeito o Pr., mas não concordo com essa parte do artigo.

    Maça e pomelo são frutas, ricas em vitaminas, seguem o objetivo de nutrir, porém cada uma agrada e segue um paladar diferente.

    Todo artista, independente do "setor" que atue, quando está produzindo, tem uma relação promíscua com sua criação. É algo luxurioso, violento, intimidador. É um sensação íntima, profunda e orgástica. Concordo com o Rainer Maria, é isso mesmo.

    A criatura reflete o momento do criador. Por isso que não gosto de arte muito técnica. Gosto quando o artista transmite mais sentimento, é mais visceral. Claro que a técnica é necessária, mas hoje em dia vejo muito isso na literatura.

    Escritores preocupados com a venda, em ganhar milhões e serem reconhecidos, se tornando comerciais e esquecendo de pôr sentimento, mesmo que seja sentimento de repulsa.

    Acho que a arte tem que vir das entranhas e ser cuspida ou vomitada para fora, sem pudor ou temor.

    Se não for assim, vira uma paródia comercial pra vender e lucrar. (Tem seu valor também, com certeza, porém não me agrada).

    Abração, e esse bate papo poderia ir longe numa mesa de bar haha.

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    Site Oficial: JimCarbonera.com
    Rascunhos: PalavraVadia.blogspot.com

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  5. Lindo texto,Paulo! E escrever é deixar sair tanto que há em nós... abração,chica

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  6. Mais um belo texto!

    Realmente escrever é uma coisa bela! É uma forma de arte que comove e que não se desfaz com o tempo.
    Algumas coisas que lemos ficam para o resto da vida na nossa mente e ão adianta a gente querer esquecer que uma vez marcado pra sempre marcado será!

    Beleza de texto que você nos deu a honra e prazer de ter escolhido pra ler! Gostei muito Mareleza!

    Fica com Deus meu amigo!

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  7. Eu escrevo. Eu leio. Cada escrita é com a intenção de passar uma mensagem positiva. Cada leitura é uma viagem, algumas vezes para lugares bem conhecidos, noutro para terrenos distantes e que não conheço.
    Bela escolha de texto, Paulo!!!!!

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  8. Olá Paulo!
    Olha... Eu tenho que admitir que fiquei boquiaberto com este texto.
    Eu sempre encarei a literatura como uma das 8 artes (Na verdade são 7, já que eles não incluem a literatura...)
    Mas é verdade, escrever é uma das coisas mais prazeirosas que podem existir no mundo.
    Provavelmente a razão para que eu queira ser escritor não veio do simples fato de eu gostar de literatura. Veio do fato de que eu simplesmente adoro viver outras coisas, viver momentos, é uma sensação diferente, difícil de explicar... Mas é uma sensação boa.

    Abração e um ótimo fim de semana para você :)

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  9. Lindo texto!
    E me deu uma força danada para seguir em frente e não desistir dos meus sonhos.
    Posso não ser a escritora mais famosa, mas tenho orgulho de ser alguém capaz de transformar imaginação em livros.
    Obrigada por compartilhar conosco essas palavras tão bonitas!
    Estou seguindo o seu blog ;)
    Beijos
    http://www.giselecarmona.blogspot.com/

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  10. Fala Paulo, meu chapa,


    Mais um grande trabalho do Pastor Gondim, que, pelo que eu imagino e percebo, é um sujeito muito erudito. Vinicius de Moraes e Eduardo Galeano, cada um na sua área, são dois escritores citados no texto que eu admiro muito. Especialmente o Galeano, que eu acompanho e que tem uma visão de mundo parecida com a minha.

    Escrever é uma arte maravilhosa mesmo, e quem escreve sabe o prazer que é poder transformar pensamentos e sentimentos em caracteres que podem ser decifrados por outras pessoas.

    Gostaria de te agradecer pelo apoio na divulgação do meu último post. Grande abraço meu brother Paulo.

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  11. Olha aqui Paulo, porque esse pastor é diferente e merce todo o meu respeito:


    http://www.paulopes.com.br/2012/01/pastor-gondim-afirma-que-ateus-tem-de.html?utm_source=feedburner&utm_medium=feed&utm_campaign=Feed%3A+blogspot%2FLHEA+%28Paulopes+Weblog%29

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  12. Nada mais belo que a escrita livre dos arreios impostos pelo medo de errar ou pela possibilidade da condenação vinda de outras pessoas. Escrever é lançar-se ao tempo, fazendo do tempo um aliado capaz de eternizar nossas palavras; e escrever com a alma é ainda mais gratificante.

    Belo texto! Excelente divulgação; material desse tipo merece e deve ser propagado sempre.

    Até, Paulo!

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  13. Oi Paulo,
    Excelente post! Assim como a literatura se basta em si mesmo, entendo que o escritor se basta em seus leitores.

    Luciana

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  14. Olá, Paulo! Gostei muito da postagem!

    Sabe, vejo a escrita, do mesmo jeito que vejo a leitura… como uma forma de poder estar onde quisermos. Claro que nos livros, viajamos para lugares que já foram apresentados pelo autor(apesar de estarmos livres para fazermos nossas inferências).

    Enfim, para mim, tanto ler, quanto escrever é poder dar asas à imaginação. Ou simplesmente, dar asas às lembranças, como fazemos nos diários.

    Abração JoicySorciere => Blog Umas e outras... *-*

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  15. Eu achava que vc ia gostar mesmo !

    eu queria fazer uma especie de forum para debate, mas as pessoas ficam muito desconfortaveis quando o assunto é religião

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  16. Paulo, não sei se o amigo lembra, mas numa outra postagem sua reproduzindo um texto do pastor Ricardo Gondim, teci elogios a ele. Vendo novamente você reproduzindo um outro texto seu, me convenço mais ainda que se trata de um inspiradíssimo e hábil homem com as palavras. Parabéns pela publicação Paulo. Um grande abraço.

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Olá queridos, você está em meu site, o paulocheng.com, um espaço onde eu escrevo e posto minhas impressões, meus devaneios, minhas inspirações e sandices, desde já agradeço pelo acesso, lembrando que você não é obrigado a comentar, pois não há uma obrigatoriedade ou imposição, caso você não ache interessante ou esteja com preguiça, não tem problema, o que quero aqui é o prazer acima de qualquer coisa, e não obrigatoriedade, ok? Que Deus possa te abençoar em Cristo Jesus.