terça-feira, 2 de outubro de 2012

O colapso do movimento evangélico

Ricardo Gondim

Dois pastores paulistas se fantasiam de Fred e Barney. Isso mesmo, fantasiados de Flintstone, entre gracejos ridículos, acreditam que estão sendo "usados por Deus para salvar almas". Na rádio, um apóstolo ordena que tragam todos os defuntos daquele dia, pois ele sente que Deus o "ungiu para ressuscitar mortos". 
Os jornais denunciam dois políticos de Minas Gerais, "eleitos por suas denominações para representar os interesses dos crentes", como suspeitos de assassinato. O rosário se alonga: oração para abençoar dinheiro de corrupção; prisão nos Estados Unidos por contrabando de dinheiro, flagrante de missionários por tráfico de armas; conivência de pastores cariocas com chefões da cocaína.

Fica claro para qualquer leigo: O movimento Evangélico brasileiro se esboroa. O processo de falência, agudo, causa vexame. Alguns já nem identificam os evangélicos como protestantes. As pilastras que alicerçaram o protestantismo vêm sendo sistematicamente abaladas pelo segmento conhecido como neopentecostal. Como um trator de esteiras, o neopentecostalismo cresce passa por cima da história, descarta tradições e liturgias e se reinventa dentro das lógicas do mercado. É um novo fenômeno religioso.
É possível, sim, separá-lo como uma nova tendência. Sobram razões para afirmar-se que o neopentecostalismo deixou de ser protestante ou até mesmo evangélico.É uma nova religião. Uma religião simplória na resposta aos problemas nacionais, supersticiosa na prática espiritual, obscurantista na concepção de mundo, imediatista nas promessas irreais e guetoizada em seu diálogo cultural.
Mas a influência do neopentecostalismo já transbordou para o "mainstream" prostestante. 

O neopentecostalismo fermentou as igrejas consideradas históricas. Elas também se vêem obrigadas a explicar quase dominicalmente se aderiram ou não aos conceito mágicos das preces. Recentemente, uma igreja batista tradicional promoveu uma "Maratona de Oração pela Salvação de Filhos Desviados".
Pentecostais clássicos, como a Assembléia de Deus, estão tão saturados pela teologia neopentecostal que pastores, inadvertidamente, repetem jargões e prometem que a vida de um verdadeiro crente fica protegida dentro de engrenagens de causa-e-efeito. Os "ungidos" afirmam que sabem fazer "fluir as bênçãos de Deus". É comum ouvir de pregadores pentecostais que vão ensinar a  "oração que move o braço de Deus”.
O Movimento Evangélico implode. Sua implosão é visceral. Distanciou-se de dois alicerces cristãos básicos, graça e fé. Ao afastar-se destes dois alicerces fundamentais do cristianismo, permitiu que se abrisse essa fenda histórica com a tradição apostólica.

1. A teologia da Graça
Desde a Reforma, protestantes e católicos passaram a trabalhar a Graça como pedra de arranque de um novo cristianismo. O texto bíblico, “o justo viverá da fé”, acendeu o rastilho de pólvora que alterou a cosmovisão herdada da Idade Média. A Graça impulsionou o cristianismo para tempos mais leves. Foi a Graça que acabou com a lógica retributiva que mostrava Deus como um bedel a exigir penitência. Devido a Graça entendeu-se que a sua ira não precisa ser contida. O cristianismo medieval fora infectado por um paganismo pessimista e, por isso, sobravam espertalhões vendendo relíquias e objetos milagrosos que, segundo a pregação, “ garantiam salvação e abriam as janelas da bênção celestial”.
Lutero, um monge agostiniano, portanto católico, percebeu que o amor de Deus não podia ser provocado por rito, prece, pagamento ou penitência. Graça, para Lutero, significava a iniciativa de Deus, constante, unilateral e gratuita, de permanecer simpático com a humanidade. Lutero intuiu que Deus não permanecia de braços cruzados, cenho franzido, à espera de que homens e mulheres o motivassem a amar. O monge escancarou: as indulgências eram um embuste. Assim, Lutero solapava o poder da igreja que se autoproclamava gerente dos favores divinos.
Passados tantos séculos, o movimento neopentecostal, responsável pelas maiores fatias de crescimento entre evangélicos, abandonou a pregação da Graça. (É preciso ressaltar, de passagem, que o conceito da Graça pode até constar em compêndios teológicos, mas não significa quase nada no dia-a-dia dos sujeitos religiosos).

Os neopentecostais retrocederam ao catolicismo medieval. É pre-moderna a religiosidade que estimula valer-se de amuletos “como ponto de contato para a fé”; fazerem-se votos financeiros para “abrir as portras do céu”; “pagar o preço” para alcançar as promessas de Deus. Desse modo, a magia espiritual da Idade Média se disfarçou de piedade. A prática da maioria dos crentes hoje se concentra em aprender a controlar o mundo sobrenatural. Qual o objetivo? Alcançar prosperidade ou resolver problemas existenciais.

2. A compreensão da Fé
“A Piedade Pervertida” (Grapho Editores) de Ricardo Quadros Gouvêa é um trabalho primoroso que explica a influência do fundamentalismo entre evangélicos.
“O louvorzão, assim como as vigílias e as reuniões de oração, e até mesmo o mais simples culto de domingo, muitas vezes não passam de um tipo de superstição que beira a feitiçaria, uma vez que ele é realizado com o intuito de ‘forçar’ uma ação benévola da parte de Deus, como se o culto e o louvor fossem um ‘sacrifício’, como os antigos sacrifícios pagãos. Neste caso, não temos mais liturgias, mas sim teurgias, nas quais procura-se manipular o poder de Deus” (p.28).

Ora, enquanto fé permanecer como uma “alavanca que move os céus”, as liturgias continuarão centradas na capacidade de tornar a oração mais eficaz. Antes dos neopentecostais, o Movimento Evangélico já se distanciara dos Místicos históricos que praticavam a oração com um exercício de contemplação e não como ferramenta de como tornar Deus mais útil.

Fé não é uma força que se projeta na direção do Eterno. Fé não desata os nós que impedem bênçãos. Fé é coragem de enfrentar a vida sem qualquer favor especial. Fé é confiança de que os valores de Cristo são suficientes no enfrentamento das contingências existenciais. Fé aposta no seguimento de Cristo; seguir a Cristo é um projeto de vida fascinante.

O neopentecostalismo ganhou visibilidade midiática, alastrou-se nas camadas populares e se tornou um movimento de massa. Por mais que os evangélicos conservadores não admitam, o neopentecostalismo passou a ser matriz de uma nova maneira de conceber as relações com o Divino.
A alternativa para o rolo compressor do neopentecostalismo só acontecerá quando houver coragem de romper com dogmatismos e com os anseios de resolver os problemas da vida pela magia.
O caminho parece longo, mas uma tênue luz já desponta no horizonte, e isso é animador.

Soli Deo Gloria


Texto do pr. e escritor Ricardo Gondim

10 comentários:

  1. Muuuuuuiiiito bom! É o que eu tenho dito no meu blog! Se faz necessario uma nova reforma protestante, pois os protestantes estão perdidos!

    Parabens Chengão por colocar um texto tão bom aqui!

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    1. Fala Mansim, realmente foi um baita texto, centrado, esclarecedor. Gosto muito dos textos do Gondim, e através deles, abri muito a minha cabeça em relação à estrutura da igreja evangélica brasileira.

      Abração.

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  2. Olá, querido Paulo Cheng!
    Então... Sou católica e sei muito bem dos podres do passado e do presente - frutos do poder e frutos da maldade. Com o protestantismo não é diferente - os exemplos estão aí. É um festival de abuso! E isso é uma grande pena - onde deveria reinar a paz, ela é a última a ser pensada.

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    1. Oi Tsu, tem muita palhaçada por ai, mas lembrando que, tem gente boa e sincera em todo o lugar, é preciso separar o joio do trigo.

      Um grande abraço.

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  3. Oi Cheng
    Eu já disse o que penso do Pr. Ricardo Gondim, mas tiro o chapéu para este texto, tudo que ele falou é verdade, pena que todos nós fazemos parte do problema, inclusive ele.
    Bjão. para ti e para Michel. Fiquem com Deus!

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    1. Querida Lu, nem todo texto do Gondim eu aprovo, mas a sua sensatez em relação ao movimento evangélico eu tiro o chapéu, e foi através dele que mudei muitos dos meus conceitos em relação ao movimento evangélico. Hoje eu respiro melhor por ter rompido com muitas coisas.

      Abração pra ti.

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  4. E ae Chengão!
    Tudo bom?
    É cara...a situação é a seguinte: RELIGIÃO = POLITICA. Sempre foi assim em todas as épocas e sempre vai ser.O evangelismo hoje em dia se tornou uma religião muito lucrativa e de fácil manipulação e claro que muitos irão tirar proveito.
    Excelente seu texto.
    Eu estoou naquela, levando a vida, sabe como é...
    Sabe eu creio que você gostará de Nárnia ou pelo menos a achará interessante. Tem muitas referências bíblicas ali, o autor foi bemengehoso em colocar. E tem todo o lance de magia e fantasia também. Eu já ouvi falar do NetFlix mas nunca usei. Até porque eu sou o tipo de pessoa que gosta de ver os filmes mais de uma vez e para mim é mais viável baixar pela net (ou se eu gosto muito e estiver na promoção..comprar).
    bjs

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    1. Tsu, vou dar uma olhada no filme Nárnia, e em relação ao Netflix, vc para uma mensalidade de 15 reais, e vê os filmes quantas vezes quiser, é bem legal, tem muita variedade.

      Abração.

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  5. Paulo, independente de se concordar ou discordar dele, fato é que o Ricardo Gondim é um homem que fala com sabedoria, inteligência e, sobretudo, o que é mais importante; conhecimento. Gosto de ler textos que nos provocam o pensamento, e ele me parece fazer isso muito bem. Um grande abraço Paulo.

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    1. PC, é sempre um prazer postar textos do Gondim aqui em meu site, são profundos e sábios, e mesmo para aqueles que não estão familiarizados com o mundo gospel, esses textos servem para abrir a mente.

      Abraço.

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